quarta-feira, 1 de julho de 2009

Io, filha de Ínaco / Prometeu Acorrentado (Ésquilo)




Como poderia deixar de cumprir vosso desejo? Ouvi, pois, a história que tanto desejais conhecer, embora muito me custe recordar a causa do flagelo com que o céu oprime, e da horrível transformação que tenho sofrido. Quando, no recesso de meu retiro virginal, ainda os sonhos me deleitavam, uma voz insidiosa me dizia: "Ò ninfa ditosa, por que insistes em conservar sua virgidade, se podes realizar o mais glorioso himeneu? Por ti arde Júpeter na chama do desejo; contigo ele quer fluir os prazeres do amor. Filha de Ínaco, não desprezes o amor de Júpiter; corre às plagas de Lerna, àquelas campinas irrigadas por teu pai, e cede ao olhar amoroso de um deus que te adora". Pobre de mim! Tais eram os sonhos que me perseguiam todas as noites. Resolvi, finalmente, cientificar meu pai do que se passava. Ele enviou mensageiros a Pitos e a Dodona, a fim de indagar o que era mister para agradar aos deuses. Por algum tempo não obteve senão respostas ambíguas, cujo sentido se ocultava sob a mais impenetrável obscuridade. Deram-lhe, por último, uma decisão oracular determinando que eu fosse expulsa de minha casa e de minha pátria, e condenada a vagar sem rumo aos confins do mundo. Se meu pai não obedecesse, Júpiter desfecharia raios fulminantes, que destruiriam totalmente a nossa raça. Cumprindo esse oráculo de Apolo, meu pai obrigou-me a partir para longe, em doloroso exílio. Ele assim agiu, eu bem sei, contra a sua, e a minha vontade; mas o poder de Júpiter o forçou a praticar tamanha violência. Desde logo minha razão e meus traços fisionômicos se alteraram: apontam estes chifres em minha fronte; um moscardo me fere com seu ferrão agudo... Aos saltos, numa corrida louca, atirei-me à corrente benéfica do Cencreia, e procurei a fonte mais alta do Lerna. Um cão pastor, filho da terra, o impiedoso Argos, seguia-me por toda parte, observando-me com seus inúmeros olhos. Inesperado golpe privou-o, de repente, da vida; mas o terrível inseto, flagelo divino, continuou a perseguir-me, expulsando-me de um país para o outro. Eis o que tem sido minha sorte até o presente momento; visto que sabes o que ainda me resta a sofrer, dize-me: eu te peço! Não me iludas com uma mentira... Trair a verdade é o mais vergonhoso dos vícios.

Nenhum comentário: